Thursday, December 31, 2009

TUDA - pap.el el.etrônico

Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano II Número 13 - Janeiro 2010
Conto - Dorival Fontana

Vangobot, Walking Down a City Street


O Atraso

Acordo com o display do rádio relógio piscando. Faltou luz durante a noite e novamente me esqueci de colocar as baterias de emergência. Essa companhia deveria ser processada. Só porque estamos dormindo não precisamos da luz elétrica? E quem tem medo do escuro como é que fica? E quem tem rádio relógio como eu e sempre se esquece de colocar as pilhas? A energia elétrica raramente falta no horário comercial, é sempre no final do campeonato de futebol ou no desfecho daquele filme de suspense. Não posso chegar atrasado novamente, recebi um ultimato do gerente: “Outro atraso e rrrruuaaaaa!”. Até brinquei perguntando se pretendia me transferir para algum tipo de serviço externo. O que estava ruim piorou com esta brincadeira sem graça, fora de hora, para não dizer BURRA! Estas foram exatamente as suas palavras.

Vida de assalariado é assim mesmo, a gente vai se acostumando com essas violências quase sexuais. O pior é ouvir o sermão repetitivo do chefe quando relembra os 32 anos na mesma empresa sem nenhum atraso ou afastamento.

Chegando lá vou dizer-lhe que pontualidade não é o único requisito para avaliação de um funcionário, e que eu não me prostituo para garantir o emprego como a maioria neste departamento. Embora o fantasma do desemprego aflija a todos, eu não vendo a alma para o diabo da empresa e se todos os argumentos não bastarem, apresento provas materiais dos seus encontros secretos com a secretária da diretoria. Ah! Se eu tivesse coragem...

Droga! O meu ônibus acabou de passar, ainda vou ter que ir a pé até o metrô?! A fila na bilheteria deve estar enorme. Bem, ao menos terei um tempo extra para engendrar outra desculpa convincente para entreter o mau humor do meu chefe e “salvar” temporariamente o meu emprego. A minha lista de justificativas está muita escassa: falecimento de parente está desgastado (já enterrei em vida todos eles, alguns mais de uma vez); doença acompanha atestado médico o que atualmente está muito difícil obter; atraso de ônibus, de metrô ou trânsito... já usei e abusei de todos. Uma voz no fundo da minha consciência tenta sussurrar alguma coisa: “Quem sabe, se você disser a verdade só para variar?

A estratégia da justificação convincente geralmente funciona assim: primeiro devo acreditar na mentira para que esta se torne uma verdade para mim, assim consigo repassar uma verdade fantasiosa ou uma mentira quase honesta. A história toda não pode ser uma mentira completa, tem que haver um resquício de verdade, um vestígio qualquer de realidade para que eu acredite e consiga repassar ao ouvinte.

Neste momento, os alto-falantes anunciam que a paralisação dos trens ocorrera devido a um acidente com usuário na via.

Os comentários sarcásticos e insensatos prevalecem nessas ocasiões: “Antes ele do que eu!”. “Deve ser algum torcedor de futebol devido a outra derrota do seu time!”.

Algumas senhoras esboçavam o sinal da cruz, outras soluçavam como quem perde um ente querido, enquanto a maioria mantinha-se insensível. Penso que quando chega a hora não tem jeito, não há atraso que adie o inevitável!

Por um instante questionei-me se não poderia acontecer comigo ou com qualquer outro personagem nessa estação. A vítima poderia ter sofrido um mal súbito ou um desafortunado ao reagir a um assalto! Talvez um suicida. Quem sabe, um descuidado que se precipitou ao embarcar ou algum infeliz com o seu emprego pendente como eu, distraiu-se pensando na melhor desculpa para justificar-se! É melhor eu me afastar da faixa amarela de segurança! Um silêncio fúnebre invade a consciência por alguns instantes, cúmplices olhares identificam-se na tragédia anônima do cotidiano, onde a indiferença denuncia cada espectador passivo. Permaneci estático no centro da plataforma arrastado pela multidão ruidosa que gentilmente esbarrava-se entre si. Num sobressalto reagi contra a massa revoltada e caminhei no contra fluxo da manada em debandada. Não consegui embarcar, o acidente não saía da minha cabeça, voltei para casa sem me importar com as consequências.

Pela manhã ao chegar ao escritório encontrei todos alarmados cochichando pelos corredores, os meus ouvidos sem esforço captaram os rumores que alimentavam a curiosidade alheia. Era o meu chefe ontem no acidente no metrô.

O tempo rapidamente encarrega-se de restabelecer a normalidade, assim nos esforçamos para deixar toda má lembrança no esquecimento.

Ainda permaneço na mesma empresa e até fui promovido. Eventualmente ainda chego atrasado, com menor frequência agora que troquei o meu velho rádio relógio por um relógio despertador, que às vezes me esqueço de dar corda.

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